(Foto: Sebastião Salgado)
Em Salvador, temos um carnaval cada vez mais comercial, feito para os ricos turistas do Brasil e do mundo todo e para uma elite local, que têm condições de pagar um caro camarote ou um dispendioso abada para seguir o trio elétrico de alguma "celebridade" - ou "artista que não faz arte", no dizer de Marcelo D2. A violência grassa, a cidade vira campo de guerra: os prédios, praças e monumentos, nas suas fachadas, são literalmente encaixotados para não serem depredados, assaltados ou virarem motel e banheiro a céu aberto. E a periferia desce ao axé, pagode e outros ritmos. De um lado, na avenida, o roubo, e, de outro, "a porrada come solta" na base da - como diz Caetano - “vã valentia”. Os camarotes e trios, cada vez maiores, cada vez mais tiram espaço do povo na avenida, o que aumenta a violência de foliões nas “pipocas” e a ação também violenta da polícia, claro, para quem está do lado de fora das cordas. Os cordeiros (auxiliares de segurança nos trios elétricos) - que até já foram objeto de estudo no Instituto de Saúde Coletiva, da Universidade Federal da Bahia, através da dissertação de mestrado de Juliana M. Maia, intitulada O carnaval dos cordeiros: trabalho e violência entre auxiliares de segurança de Salvador (2008) - são o contraponto disso tudo. Pobres, sub-proletários, vindos da periferia, tendo que pernoitar in loco nos dias da folia, recebendo uma diária irrisória - além de farta humilhação - e tendo uma jornada braçal insalubre de horas e horas para que “a galera curta sua folia”. Há casos de cordeiras grávidas de meses trabalhando; cordeiras assediadas sexualmente na hora do pagamento; e pagamentos marcados para de tarde efetuados só na manhã seguinte, sem maiores ou menores explicações, obrigando estas pessoas a terem que dormir ao relento e mal alimentadas. Desrespeito total. Direitos trabalhistas zero. Mas, os camarotes e trios aumentam lotação e luxo a cada ano, e o ganho dos “artistas” e produtores cresce exponencialmente a cada carnaval. Enquanto um folião chega a dispor de mil reais numa noite para um camarote, um cordeiro ganha em torno de dez reais por um dia todo de exaustivo trabalho. Conheço isso bem de perto: no carnaval de 2004, recém-chegado a Salvador, num período de adaptação e desemprego, tive como opção a venda de cervejas na avenida; quanto à dissertação mencionada, fiz sua revisão e normatização; e conheço como folião, pois freqüento o carnaval, por vezes, apesar de tudo, afinal quero exercer minha crítica, mas sem chateza... Maia, na conclusão de seu trabalho sobre os cordeiros destaca que: “[No carnaval] Espera-se a elevação da violência devido à distensão das normas sociais e à multidão. […]. Também, surgem os perigos do comportamento antissocial das pessoas, onde se destacam as diversas formas de agressões físicas (tiro, facada, garrafada, pedrada, latada, murro) fruto da interação dinâmica da diversidade de pessoas e interesses. […]. O trabalho se resume a ganhar pouco em relação aos perigos sofridos, onde a violência chama a atenção, os auxiliares são alvo da múltipla vitimização de uma variedade de agressores (pipoqueiros, policiais, outros cordeiros, foliões de dentro dos trios e vândalos, dentre outros), bem como de grupos interessados especificamente em bater nos cordeiros. Na dispersão, que inclui todo o trajeto desde a saída do circuito até chegar em casa, os auxiliares sofrem com as agressões praticadas por vândalos e os excessos de alguns policiais”... Pode-se ver o carnaval como uma alegoria da sociedade atual: um abismo enorme entre classes que têm, como única ponte as unir, a alienação. Ao meio, uma garganta profunda tragando violência, drogas, falta de Educação, miséria, opulência, promiscuidade, desemprego, preconceito, revolta, exploração sexual e trabalho abusivo... Olha o breque!...